9.11.13

A semiótica do perseguidor

Héber Sales


Esse conto soberbo de Julio Cortázar é também uma pequena tragédia semiótica. Johnny Parker, saxofonista genial e O Perseguidor, luta desesperadamente para se livrar da armadilha das palavras e das categorias. É o que acontece quando ele, certa noite, se olha num espelhinho (os grifos são meus):
"Na verdade esse cara não sou eu, no primeiro momento senti claramente que não era eu. Agarrei-o de surpresa, de banda, e soube que não era eu. Eu sentia isso, e quando a gente sente alguma coisa... Mas é como em Palm Beach, em cima de uma onda despenca em você a segunda, e depois outra... Você não acabou de sentir e já vem outra, vêm as palavras... Não, não são as palavras, é o que está nas palavras, essa espécie de cola-tudo, essa baba. E a baba vem e cobre você, e o convence que o do espelho é você. Claro, mas como entender? Mas se sou eu, com meu cabelo, com esta cicatriz. E as pessoas não entendem que a única coisa que aceitam é a baba, e por isso acham tão fácil se olhar no espelho."
Johnny se refere à sua identidade social, colada nele por seu público, pelos críticos, por Bruno, seu biógrafo e narrador do conto: o protagonista é afro-americano, jazz man, músico revolucionário, renovador do gênero, blá, blá: baba.

E a baba não gruda apenas em Johnny, não se espalha somente sobre as pessoas. Ela também cola nas coisas e acontecimentos, tapando os seus furos e saliências desconcertantes, tornando o mundo muito mais harmonioso e previsível do que ele de fato é.

A arte, a verdadeira arte, é a perseguidora dessa ilusão, é a "lebre que corre atrás de um tigre que dorme", e não "o que Satchmo toca, tão limpo, tão puro".
"Você não acha que o que Satchmo toca é como um aniversário ou uma boa ação? Nós... Olha, eu digo que quis nadar sem água. Achei que... mas tem de ser idiota... achei que um dia encontraria outra coisa. Não estava satisfeito, pensava que as coisas boas, o vestido vermelho de Lan, e até Bee, eram como ratoeiras, não sei me explicar de outro jeito... armadilhas para que a gente se conforme, você sabe, para que a gente diga que está tudo certo. Bruno, eu acho que Lan e o jazz, até o jazz, eram como anúncios de revista, coisa bonitas para que eu ficasse de acordo como você fica porque você tem Paris e sua mulher e seu trabalho... Eu tinha o meu sax..."
Johnny não se conforma, tenta se libertar da baba por meio da sua música, da maconha, do álcool, e de pequenas epifanias cotidianas. A mais impressionante e perturbadora delas acontece no metrô, que para ele "é como estar metido num relógio" ("As estações são os minutos, você entende?").
"Comecei a pensar na minha velha, depois em Lan e nos meninos, e claro, naquele momento eu sentia que estava caminhando pelo meu bairro, e via as caras dos rapazes, os daquele tempo. Não era pensar, acho que já disse a você que não penso nunca; estou assim parado numa esquina vendo passar o que penso, mas não penso no que vejo. Entende?"
Johnny está ali, metido num vagão, em estado de fluxo, lembrando velozmente de tantas coisas que, para enumerá-las, precisaria de "uns bons quinze minutos". Mas todas essas memórias lhe ocorrem em um minuto e meio, o tempo do trajeto entre uma estação e outra.
"Então, como pode ser que eu tenha pensado durante quinze minutos, hein, Bruno? Como se pode passar um quarto de hora em um minuto e meio? [...] Bruno, se eu pudesse viver apenas como nesses momentos, ou como quando estou tocando e também o tempo muda... Você percebe o que poderia acontecer num minuto e meio... Então um homem, e não só eu mas também essa aí e você e todos os rapazes, poderiam viver centenas de anos, se a gente encontrasse a maneira poderíamos viver mil vezes mais do que estamos vivendo por culpa dos relógios, por causa dessa mania de minutos e de depois de amanhã..."
Bruno, o narrador, sorri da melhor maneira que pode, compreende vagamente que Johnny tem razão. "Mas o que ele suspeita e o que eu pressinto de sua suspeita vai se apagar como sempre assim que eu estiver na rua e entrar na minha vida de todos os dias", assim que estiver de volta à baba.

Leia também: A semiótica do vazio.

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