24.9.16

O que faz de um publicitário um publicitário


Héber Sales

A nossa profissão está atualmente mais para matemática do que para ciências humanas. É uma síndrome que está devastando o marketing e ameaça a publicidade também. Aliás, vocês conhecem a diferença entre um profissional de marketing e um publicitário, não é?

Um profissional de marketing é o sujeito racional o suficiente para saber que um psicopata jamais vai ser tão querido quanto um mocinho. Um publicitário é como um bom roteirista: é criativo o suficiente para imaginar a história de um serial killer psicopata encantador, com quem quase todo mundo vai se identificar (Dexter).

A miséria da maioria das faculdades de publicidade hoje em dia é ensinar marketing e negócios demais, e arte, criação e criatividade de menos. O que é preciso aprender de uma vez por todas? Que a linguagem não foi feita para revelar a verdade - e eu duvido que revele -, mas para realizar o impossível.

Fazendo arte, jogando bola


O excesso de raciocínio analítico e linear começa pelo modo como alguns (cada vez menos, sejamos justos) ainda vêem o trabalho das agências de publicidade .

Uma agência não é uma indústria ou repartição. Uma agência é uma bola rolando, uma bola chamada criação. Cada setor da agência é um dos gomos da bola (mas todos os gomos são a mesma bola, a bola da criação; todos são criativos). Imaginem.



Os gomos rolam juntos desde o começo da jogada até o fundo do gol. Uma hora, um gomo está por cima, empurrando os outros adiante; outra hora, ele está por baixo, sendo empurrado (mas logo ele pode voltar a ficar por cima e empurrar os demais novamente).

Quando o gomo do atendimento começa a rolar, os outros gomos já estão rolando também, ou seja, a bola da criação já começou a girar: as perguntas na reunião do briefing são perguntas criativas, que dão abertura a ideias fora da caixa (talvez por isso muitas agências hoje em dia levem toda a equipe para a reunião de briefing com o cliente). Idem para as perguntas que o planner faz em suas pesquisas com consumidores, análises de mercado, etc.

Quando o gomo da mídia ou da produção está por cima, impulsionando os outros, ele faz os gomos do atendimento, do planejamento e da criação rolarem outra vez e tomarem, eventualmente, uma nova direção: eles conhecem possibilidades de meios, formatos e execução que os demais gomos (ainda) desconhecem, possibilidades que abrem janelas para outras visões estratégicas e criativas.

Por isso é bom que os gomos corram todos juntos. Uma agência ou qualquer outra empresa que trabalha com criatividade não pode ser organizada como uma linha de montagem fordista. Não vai funcionar, a mágica não vai acontecer.

O que fazer se te colocarem numa linha de montagem dessas? Abra a roda e faça todo mundo começar a conversar o tempo todo. É a melhor maneira de evitar que lá pelo meio do trabalho, quando a coisa já estiver quase na produção, você descubra que precisa fazer um bocado de retrabalho se quiser colocar na rua a campanha arrebatadora pela qual o coração de todo publicitário bate mais forte (e o coração do seu cliente também).

9.9.16

Ativismo social é tendência

Três mega eventos, a mesma tendência: ativismo social marca o ano de 2016 na arte, na moda e na arquitetura.

A 32a. Bienal São Paulo de Arte, cujo tema é Incerteza Viva, seleciona obras que tratam das grandes questões do nosso tempo, tais como aquecimento global, perda da diversidade biológica e cultural, instabilidade econômica e política, injustiça no acesso aos recursos naturais, xenofobia e migração global, entre outras. Arte existencialista e de protesto, com forte carga política.

O primeiro dia da Semana de Moda de NY foi de militância. Feminismo e migração foram destaque nos desfiles do coletivo FTL Moda e de Johny Dar.

Na arquitetura, a Bienal de Veneza reúne trabalhados que contribuem para o bem comum e a melhoria de vida das pessoas. O Brasil participa com 15 projetos.

7.9.16

Arte, cultura e publicidade

Regra e exceção na sociedade contemporânea



"Arte não é cultura. Cultura é regra. Arte é exceção" - Jean-Luc Godard. 

"Propaganda não é arte, é artesanato" - Washington Olivetto.



Héber Sales

De agora em diante, vou tratar aqui de um assunto um pouco diferente. Neste blog, já discuti sobre essa relação confusa entre arte e publicidade. Também desenvolvi uma abordagem de branding que aproxima a publicidade do ativismo cultural, o tal branding hipercultural. Agora, porém, quero trazer a arte para o centro do debate.

Cultura 


Como esclarece Geertz (1978), cultura não é exatamente regra como queria Godard, mas "tendência dominante", e raramente os grupos sociais e os indivíduos aderem de todo aos seus princípios e padrões.

Observe-se, por exemplo, o atual debate em torno da classificação de gêneros, no qual vários segmentos da sociedade propõem uma revisão da tradicional categoria feminino vs. masculino com acréscimos e até subtrações, como é o caso da moda sem gênero tão em voga entre as grandes grifes.

A dificuldade em se conseguir uma submissão unânime aos termos de uma cultura acontece porque nenhum sistema cultural, qualquer que seja ele, consegue dar conta de toda a complexidade com que lida o ser humano. Grupos e indivíduos sentem que seus padrões são, em várias circunstâncias, insuficientes para descrever, organizar e explicar a sua realidade, seja ela interna ou externa ao sujeito.

Arte


A arte, se não toda, pelo menos um certo tipo de arte (a arte moderna e contemporânea ocidental, agora globalizada), é uma denúncia dessa condição de indigência cultural: ela pode ser vista como uma crítica à cultura em favor da liberdade criativa do sujeito e, como tal, ela pode, entre outras alternativas, reembaralhar e reconstruir os valores e categorias de uma sociedade para sugerir modos de vida mais significativos, ou, de modo radicalmente cético, transcender a nossa mania de tudo classificar e rotular (discuto outros conceitos de arte neste artigo sobre publicidade e arte).

Essa parece ter sido a opção de Michel Duchamp, por exemplo, com sua arte carregada de ironia, e de muitos dos seus discípulos também, entre eles John Cage (GOMPERTZ, 2013). A transcendência proposta pela arte duchampiana visaria a realização do sujeito por meio de uma maior liberdade de pensamento e de imaginação, contra a qual estaria, até certo ponto, a cultura e até a própria arte institucionalizada dos museus, universidades e galerias.

Subjetividade e cultura


Esse conflito é um tema freudiano por excelência, o qual discuto no ensaio o mal-estar da cultura e o consolo da arte. É também um dos principais eixos do livro A Negação da Morte, de Ernest Becker (2007), que trata, entre outros assuntos, de como os indivíduos podem se relacionar com a cultura em busca de um maior senso de realização.

Entre as estratégias discutidas por Becker, encontra-se justamente a atitude artística de crítica e reconstrução radical da cultura. No extremo oposto, ele coloca o sujeito exemplarmente reprimido, que neutraliza o conflito entre cultura e subjetividade por meio da negação de suas particularidades e desejos. A possibilidade de transcendência por meio da arte não é abordada por Becker, que só considera a transcendência relacionada à experiência do sagrado.

Arte e transcendência


Há, no entanto, uma dimensão sagrada na arte duchampiana, que é justamente aquela que a liga à filosofia e à prática zen-budista (TOMKINS, 2004). Essa possibilidade não é discutida por Ernest Becker. É umas das possibilidades que se pretende debater nestes ensaios a fim de montar um quadro teórico que aprofunde e amplie o entendimento sobre as relações entre arte, subjetividade e cultura.

Arte como sistema cultural


Como um contraponto à noção de arte como crítica à cultura, é preciso considerar pontos de vista como o de Clifford Geertz (1997), que vê a arte como um sistema cultural também e, assim sendo, um elemento interno ao fenômeno da cultura. A propósito, até mesmo a subjetividade pode ser vista como sendo culturalmente constituída (escrevi à respeito disso neste ensaio sobre Bakhtin, autor que apresenta de forma bastante original um dos melhores e mais bem acabados argumentos sobre o assunto).

Outras importantes referências nesta pesquisa são: a visão da arte como contracultura e a noção de que, em nossa sociedade, a contracultura é valorizada e funcional, isto é, tem um papel socialmente construído e sancionado (TIBO, 2006). A arte reafirma-se então como crítica à cultura.

Arte e publicidade


Uma vez estabelecido esse quadro teórico, ele poderá ser usado aqui para tratar de uma questão mais específica: as relações entre arte e publicidade.

Se, por um lado, como explica Carrascoza (2006 e 2014), a publicidade se apropria de estratégias discursivas e recursos criativos da arte, por outro, ela pode ser vista como mera estetização de valores já sancionados por uma determinada sociedade ou grupo social (VOLLI, 2003).

Esta atitude culturalmente passiva e subserviente da publicidade não é entretanto uma unanimidade no meio profissional e corporativo. Há muitos que, como Toscani (1996), propõem que a publicidade tenha um papel transformador da realidade social e cultural em que vivemos, promovendo uma maior realização dos consumidores enquanto sujeitos.

Em que medida discursos como esse aproximariam a publicidade da arte enquanto crítica à cultura? Quais implicações tal prática teria na vida social das marcas?

Essas são as questões que estou abordando em meu projeto para o doutorado. Compartilharei aqui ao longo dos próximos meses alguns textos sobre o assunto. Quem quiser trocar ideias sobre essa pesquisa pode entrar em contato comigo pelo e-mail hebersales@gmail.com

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Leia também: Publicidade é arte? Regra e exceção no trabalho criativo

Referências


BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 2007.

CARRASCOZA, João Anzanello. A evolução do texto publicitário. São Paulo: Futura, 2006.

________________________. Estratégias criativas da publicidade: consumo e narrativa publicitária. São Paulo: Estação das Letras, 2014.

GEERTZ, Clifford. A transição para a humanidade. TAX, Sol (org.), 1966.

______________. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

______________. A arte como um sistema cultural. In: O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997.

GOMPERTZ, Will. Isso é arte?: 150 anos de arte moderna. Do impressionismo até hoje. Jorge Zahar Editor Ltda, 2013.

TIBO, Rafael Carneiro. Borboletas tatuadas: contracultura e arte contra a cultura. Anais do I Encontro Memorial do Instituto de Ciências Humanas e Sociais: nossa história com todas as letras. Mariana: UFOP, p. 1-9, 2006.

TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2004.

TOSCANI, Oliviero. A publicidade é um cadáver que nos sorri. Ediouro Publicações, 1996.

VOLLI, Ugo. Semiótica da Publicidade. Lisboa: Edições 70, 2003.