8.10.16

O mal-estar da cultura e o consolo da arte


Héber Sales

O conflito entre o sujeito e a cultura ao qual me referi no post sobre arte e publicidade na sociedade contemporânea é um tema típico de Freud. Para entender melhor essa luta e como ela acontece no campo da arte, é preciso começar pela definição psicanalítica do Eu.

O Eu na psicanálise


Como esclarece J.-D. Nasio, o Eu da psicanálise não equivale à "consciência de si" (p. 74), já que nele, como provam as resistências não intencionais do paciente ao processo da terapia, a parte consciente é reduzida.

A pessoa que se reconhece como indivíduo sofredor diante do analista não é o Eu, não é o sujeito freudiano ao qual nos referimos aqui (esse sujeito que se angustia diante da realidade exterior): o Eu é "uma instância do aparelho psíquico" (NASIO, 1999, p. 77). Seus principais traços são os seguintes.

  1. Está situado entre dois mundos que lhe são essencialmente estranhos: o mundo interior, o Isso, e o mundo de fora, da realidade exterior. 
  2. Funciona como um radar que percebe todas as excitações, sejam elas provenientes de dentro ou de fora. 
  3. Também atua integrando e adaptando a vida pulsional interna às exigências da realidade externa. 
  4. Ele nasce do mundo interior, desprendendo-se do Isso e se desenvolve por identificações sucessivas com os diversos objetos pulsionais. 
  5. Define-se como uma projeção mental da superfície do nosso corpo.
Antes de prosseguirmos, algumas palavrinhas sobre o conceito de pulsão.

Experimentamos continuamente em nosso mundo interno uma série de excitações. Tanto a visão de uma pessoa eufórica, que aparece em nosso mundo externo, como a dor de uma gastrite geram marcas ou imagens internas, situadas no pólo sensitivo do aparelho psíquico.

Essas marcas são chamadas de representantes das pulsões e, segundo o esquema neurológico do arco reflexo, é da natureza do nosso psiquismo procurar descarregar a excitação provocada por elas. Nisso consiste a vida pulsional interna mencionada acima.

E o que seriam os tais objetos pulsionais com os quais o Eu se identifica ao longo do seu desenvolvimento? São imagens de uma ação que poderia aliviar a tensão provocada pelos representantes das pulsões.

Notem, imagens, representantes psíquicos da ação, e não a ação em si, concreta, que permitiria a descarga total da energia gerada, já que nosso psiquismo, ao contrário do sistema nervoso, não pode resolver a excitação por meio de uma resposta motora (um leve tremor diante da picada de uma agulha, por exemplo, no caso do sistema nervoso).

Esse é um dos motivos, aliás, por que vivemos sob uma tensão constante ou, como diria Freud, em um estado permanente de desprazer. "Na porta de entrada, o afluxo das excitações é constante e excessivo; na saída, há apenas um simulacro de resposta, uma resposta virtual que implica uma descarga parcial" (NASIO, 1999, p. 21).

Um outro motivo é o chamado recalcamento, uma barreira psíquica que bloqueia a passagem dos representantes inconscientes para o nível do consciente - mais precisamente aquele grupo de representantes mais carregados de energia, que estão próximos do pólo sensitivo e buscam uma descarga rápida sem maiores considerações pelas exigências e restrições da realidade exterior, aos quais se opõem um outro grupo de representantes presentes na consciência e que buscam uma descarga lenta e controlada da tensão, de acordo com as possibilidades e limites que o mundo externo oferece (o primeiro grupo é chamado de Princípio de prazer-desprazer e o segundo, de Princípio da realidade).

O Eu, como já foi dito acima, é aquela instância do aparelho psíquico que tenta integrar esses dois princípios, procurando adaptar a vida pulsional interna à realidade do mundo exterior.

As instâncias do psiquismo


Pois bem, um dos recursos adaptativos do Eu é precisamente o recalcamento, que, como provam as resistências não intencionais do paciente durante a terapia, é um mecanismo inconsciente. Por isso não se pode igualar o Eu à consciência.

De fato, para Freud, o inconsciente é a base de toda a vida psíquica, uma qualidade presente em cada uma das instâncias do aparelho psíquico: o Eu, o Isso e o Supereu.

Dentre tais instâncias, o Isso é a mais associada ao inconsciente, apesar de, ao contrário deste, ter a capacidade de perceber no interior de si mesmo as variações da tensão pulsional.

O Isso caracteriza-se por ser estranho ao Eu - é impessoal e heterogêneo - e, ao mesmo tempo, sua coisa mais íntima. Nele encontram-se tanto as representações inatas, próprias da espécie humana, quanto as representações inconscientes de coisas, muito carregadas da energia. É desse grande reservatório de energia que o Eu e o Supereu se alimentam.

O mal-estar da cultura


Chegamos assim àquela parte do psiquismo que nos remete à cultura de modo angustiante: o Supereu, um censor interno que, por delegação das instâncias sociais, exige do Eu conformidade para com as exigências éticas do homem, fazendo emergir o sentimento de culpa que inibe pensamentos e comportamentos reprováveis pela comunidade (FREUD, 2011).

Ao contrário do que essa primeira definição pode sugerir, não devemos encarar o Supereu como algo totalmente estranho e separado do Eu. Não, ele é uma gradação do Eu, um instrumento de medida que o Eu usa para observar a si mesmo, formado a partir da identificação com a instância parental: a fim de receber amor e afeição, a criança introjeta os valores dos pais e da sociedade.

Isso quer dizer que o Supereu da criança é constituído pelo Supereu dos pais. A transmissão de valores e tradições é feita então por meio dos Supereus de várias gerações, uma após a outra, tornando essa instância o próprio veículo da cultura.

A propósito, abramos um parêntese: Freud costumava censurar as concepções materialistas da história por ignorarem essa função do Supereu e colocarem em seu lugar uma teoria que defende a determinação da cultura pelas forças socioeconômicas. Fecha parênteses: retomo esse debate em um outro ensaio, onde discuto as críticas de Bakhtin (2014) ao freudismo.

O que importa reter agora é que o Eu, em seu esforço para conciliar as demandas do Isso com os limites e condições da realidade exterior, desdobra-se em um Supereu que o ajuda a censurar e regular o fluxo da energia dos representantes de pulsões rumo à sua descarga total, a qual, como já vimos, destruiria o próprio Eu.

O consolo da arte


Entre os movimentos de adaptação do Eu, cabe destacar ainda, por sua estreita ligação com a arte, a publicidade e outras realizações culturais, o mecanismo da sublimação.

Aqui é preciso retroceder um pouco para explicar que, para Freud, o sentido oculto de nossos atos é sempre sexual. Em sua origem, encontram-se representantes pulsionais cujo conteúdo representativo corresponde àquelas regiões muito sensíveis e excitáveis do corpo, as zonas erógenas. Como seu destino, um objetivo ideal e inatingível,:"o prazer perfeito de uma ação perfeita, de uma união perfeita entre os dois sexos, cuja imagem mítica e universal seria o incesto" (NASIO, 1999, p. 46).

Diante da impossibilidade desse ato, o Eu recalca, se auto-censura por meio do Supereu, fantasia e sublima. O produto final de todo esse esforço são os atos cotidianos e visíveis das pessoas, reconhecidos pela psicanálise como atos substitutivos do irreal ato incestuoso.

A sublimação, em particular, desvia o trajeto da pulsão sexual, mudando o seu alvo: o objeto sexual visado inicialmente é substituído por outro, de valor social. É nesse sentido que a Freud propôs que as produções artísticas e culturais são "expressões sociais das pulsões sexuais desviadas de seu objetivo virtual" (NASIO, 1999, p. 55).

Qual seria, no entanto, a natureza específica dessa forma de sublimação, a arte? Uma pista para responder à questão está em uma característica muito peculiar do Supereu: o pensamento dualista (vida ou morte, bem ou mal, indivíduo ou sociedade, sem meio termo).

Ora, como discuti em um ensaio anterior, é precisamente contra essa forma de ver as coisas que a arte se insurge. Por isso, podemos entendê-la também como uma manobra do Eu para burlar a censura e os reducionismos do Supereu e se religar ao Isso, essa força desconhecida que, como sugeriu Groddeck (2001), é o grande mistério do mundo: uma força indivisível, atemporal e heterogênea que dirige o que fazemos e o que nos advém.


No limiar da liberdade (1930), René Magritte


Leia também: O divórcio do artista com a cultura


Referências


BAKHTIN, Mikhail Mikhaĭlovich. O freudismo: um espaço crítico. Perspectiva, 2014.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Editora Companhia das Letras, 2011.

GRODDECK, Georg. Escritos psicanalíticos sobre literatura e arte. Perspectiva, 2001.

NASIO, J.-D. O prazer de ler Freud. Zahar, 1999.

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