28.2.15

O mínimo denominador comum da arte


Héber Sales

Capa de disco, do tipo que discuti no post sobre semiótica e estética visual, pode ser arte? Depende do que se entende por arte. As definições variam e há um debate interminável a respeito.

Jaques Aumont, por exemplo, reconhece que a imagem, em seu modo estético, ou seja, destinada a agradar o espectador por meio "sensações (aisthésis) específicas", tornou-se quase indissociável da noção de arte, "a ponto de se confundirem as duas, e a ponto de uma imagem que visa obter um efeito estético poder se fazer passar por imagem artística". E emenda: "vide a publicidade, em que essa confusão atinge o auge" (AUMONT, 2012, p. 80-1).

Um bom ponto de partida para desfazer tal baralhada é o ensaio de Jean-Marie Schaeffer sobre o assunto. Pelas suas contas, há pelo menos seis definições de arte em circulação, sendo uma delas a que mais nos interessa agora: é obra de arte "todo artefato que "funciona" esteticamente, ficando entendido que o funcionamento estético de um artefato implica uma emancipação parcial do componente artístico [...] em relação às outras funções eventuais" (SCHAEFFER, 2004, p. 64).

De acordo com esse ponto de vista, a figura da arte deve ser "concebida como domínio de atividades a serviço de uma função estética autônoma" (SCHAEFFER, 2004, p. 66).

Obviamente não seria esse o caso da capa de um disco na publicidade, onde ela também cumpre outras funções, talvez até mais importantes: informa quem é o músico responsável pelo álbum; comunica as marcas pessoais do artista; diferencia o produto em relação aos seus similares; atrai a atenção e seduz o consumidor com o objetivo de fazê-lo comprar a obra. Em outras palavras, capa disco nesse contexto não seria arte porque não estaria a serviço de uma "função estética autônoma".

Do ponto de vista da semiótica, isso quer dizer que uma obra de arte está sempre "a propósito de seus próprios traços" (SCHAEFFER, 2004, p. 63), o que nem sempre resulta da intenção do artista apenas, mas também da "atenção estética" que a peça recebe. Máscaras africanas, lembra-nos ele - assim como capas de disco -, podem não ter sido criadas para exposição em museus e galerias, mas, a partir do momento que um curador, um crítico ou mesmo um simples espectador se propõe a apreciá-las tão somente "a propósito de seus próprios traços", elas conseguem se insinuar no domínio da arte.


Máscaras africanas exerceram forte influência sobre Pablo Picasso.


O que um artista pode fazer a respeito? A resposta de Jacques Fontanille a essa questão nos interessa muito aqui, já que um dos objetivos deste blog é discutir o trabalho criativo na sociedade contemporânea.

Para ele, a obra de arte é uma "inovação discursiva" produzida por meio da "apreensão semântica". Seus veículos privilegiados são a metáfora e a imaginação. É um ofício árduo, que exige grandes doses de desapego. A visão convencional e "cultivada" das coisas deve ser suspensa para dar lugar à "apreensão impressiva", a qual nos franqueia o acesso "às formas e aos valores por intermédio de puras qualidades perceptivas, percebidas globalmente, sem análise". Acontece então de ritmos, contrastes e formas plásticas revelarem "equivalências secretas entre figuras [...] que transportam o quadro ou o texto para um outro universo de sentido" (FONTANILLE, 2007, p. 231-2).


Esse Tao de branding, Heber Sales (2013)


Estamos finalmente salvos do tédio e da insignificância, voltamos ao domínio da poesia, que, para Greimas, é o mínimo denominador comum entre os vários tipos de arte.


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Notas

  1. A parte seguinte desta discussão, que começou no post Estética e semiótica visual: como abordar, pode ser lida em Estética, emoção e o infinito particular
  2. Sempre volto a este assunto aqui no blog. Um post antigo, que, de certo modo, serve de contraponto a este, é O que é arte afinal? 


Referências

AUMONT, Jaques. A Imagem. 16a. edição - Campinas (SP): Papirus, 2012.

FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. São Paulo: Contexto, 2007.

GREIMAS, Algirdas Julien. Semiótica figurativa e semiótica plástica. In Semiótica Plástica, org. Ana Claudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2004.

SCHAEFFER, Jean-Marie. A noção de obra de arte. In Semiótica Plástica, org. Ana Claudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2004.

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